Por David Lerer
A queda do Boeing da Gol durou dois minutos e meio. A Aeronáutica concluiu que a asa esquerda do avião menor, o Legacy, cortou um pedaço da asa direita do Boeing, e que este caiu na selva em espiral da altura de 37 mil pés.
Dois minutos e meio. Imaginem o terror dos 154 inocentes encerrados no gigantesco ataúde de aço em queda livre. Fico me indagando quantos segundos sofreram a antevisão da morte certa, antes de perderem os sentidos com a despressurização e a falta de oxigênio. Horror. Não há palavras para descrever.
Além da dor dos familiares e da impotente compaixão diante do irremediável, cai-se agora no capitulo das responsabilidades. E aí entra o "money, money, money" linguagem que os americanos entendem bem e gostam, quando é a favor deles. Dessa vez é contra, e muito, e eles estão correndo atrás do prejuízo.
O avião. Um Boeing 737-800 igual ao que foi derrubado custa de 66 a 75 milhões de dólares, dependendo do kit conforto que tiver dentro.
As vidas. Vidas não tem preço, mas de qualquer maneira 154 famílias terão de ser indenizadas. Haverá uma batalha jurídica de proporções monumentais. O seguro da ExcelAire, companhia americana de táxi aéreo dona do Legacy e empregadora dos pilotos envolvidos no acidente, não cobre falha humana.
Os dois pilotos americanos tiveram seus passaportes apreendidos pela Aeronáutica. Na prática estão detidos para averiguações, o que é perfeitamente justo. É o mínimo, aliás. E aí estão acontecendo coisas surpreendentes. Para os jovens que não tiveram tempo de aprender o que nós mais velhos queríamos dizer com "imperialismo americano", temos aí uma exposição a vivo e em cores. O triste episódio é uma aula magna sobre como os arrogantes vizinhos do Norte nos enxergam e como se comportam em momentos de crise, principalmente quando se trata de defender o sagrado direito de suas empresas e cidadãos fazerem o que bem entenderem no país dos outros e saírem ilesos. Radares da Amazônia.
O jornalista do New York Times que estava a bordo do Legacy, e que tem tanta autoridade técnica quanto eu ou você, desqualificou o sistema de controle aéreo brasileiro em entrevista fartamente divulgada mundo afora. No dia seguinte outra reportagem levanta duvidas sobre o bom funcionamento do transponder (receptor-transmissor do avião que dá o sinal para a torre de controle) do jato fabricado pela brasileira Embraer.
No terceiro dia o advogado dos pilotos afirma que os pilotos entraram em contato sim, mas a torre não respondeu. O advogado ex-ministro. Da maneira como eles enxergam o Brasil, um bom advogado tem de ser um ex-ministro da Justiça, capaz de fazer amigos e influenciar pessoas, como o dr. José Carlos Dias. O proprietário da ExcelAire, Bob Sherry, declarou: "Se houver qualquer pessoa por lá (no Brasil) que tenha influencia política ou qualquer outra forma (grifo meu) de trazer nosso pessoal de volta, nós agradecemos". Para bom entendedor... Até mesmo a secretária de Estado Condoleezza Rice está sendo mobilizada para retirar os dois do Brasil o mais rápido possível, e com isso prejudicar as investigações.Como disse um indignado oficial da Força Aérea Brasileira, "se fosse um avião brasileiro atingindo um avião comercial norte-americano, o piloto já estaria preso na Base Guantanamo, sendo tratado como terrorista".
Meu amigo Abelardo Gomes de Abreu, morador antigo e estimado de São Sebastião, foi há dois meses representar o Brasil num campeonato de remo nos Estados Unidos e teve de se despir no aeroporto para ser revistado dos pés à cabeça. Ou seja, um turista brasileiro nos Estados Unidos é tratado como suspeito. Ao passo que dois super-suspeitos americanos do maior desastre aéreo no Brasil devem ser tratados como turistas. "Imperialismo americano", crianças, é isso. Na dolorosa tragédia de oito dias atrás o único que talvez se saia bem é o Legacy produzido na vizinha São José dos Campos. Vai vender, e como. Afinal, um aviãozinho daqueles derrubar um Boeing e só danificar a pontinha da asa, é porque é muito bom.
David Lerer é médico e ex-deputado federal.